A Chave da Harmonia - Trecho

  

 

  Os ventos que arranhavam o rosto de Encarek, que caminhava entre as ruínas da periferia de Irul, capital de Varman, anunciavam, através de sua melodia soprada com vigor pelos espíritos do ar, um inverno rigoroso.

  Erguiam as folhas cor de fogo; aquela cor o único elemento quente por ali, o Sol receoso de se mostrar em uma terra de colheitas escassas.

  De todo modo não dependia do vegetal para o que sabia e precisava fazer, pois era capaz de trabalhar com as propriedades curativas também de cristais e pedras. Abaixou-se para observar de perto uma que lhe chamou mais a atenção, de um verde transparente.

  Pouco maior que sua mão direita, colocou-a na sacola de pele que trazia amarrada à cintura. Era a primeira que colhia na região. Seu propósito em Varman o de ajudar os de sua mesma espécie que ali viviam.

  Demorou mais do que o esperado para se deparar com as primeiras habitações, as cabanas dos mais pobres, dos imigrantes não-elfos, espalhadas pela floresta. Sorriu diante de um par de crianças lomais que brincavam correndo uma atrás da outra. Mas que pararam ao vê-lo e dispararam para longe. Para avisar alguém.

 

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  “Então o senhor é um curandeiro.” Como era preferência entre os lomais, conversariam por telepatia. Aquele o primeiro que se oferecera para recebê-lo em seu lar, chamado Issai, e que vivia sozinho, mas tinha alguns sobrinhos: dois deles os que o haviam visto em sua chegada. “Estávamos mesmo precisando de um” sorriu e levou à boca de lábios grossos uma tigela de madeira com uma bebida à base de água quente, cevada e ervas, que também dera a Encarek.

  “Por que diz isso?” Este lhe perguntou.

  “Esta aqui é uma nação élfica. Foi fundada por elfos e para os elfos. Meus bisavós vieram morar aqui achando que conseguiriam uma vida melhor, mas acabaram por passar fome.” Quase se engasgou com a bebida. “Enquanto os elfos por natureza conseguem ficar por mais tempo sem comer e não morrem de causas naturais, a menos que abandonados por tudo e por todos. Afinal têm o ich, que aqui em Varman é exclusivo deles, a menos que consigamos obtê-lo por meio de certos subterfúgiosque porém são perigosos e caros demais para nós. Assim como qualquer remédio, na verdade. Só nos resta rezar para os deuses, mas eles demoram a nos atender.” Issai encarou seu interlocutor.

  “Vocês todos aqui seguem os deuses dos elfos?” Encarek baixou o olhar e tomou um gole.

  “Para dizer a verdade, irmão, estou descrente com relação a todos os deuses. Mas vou às vezes ao templo dos adanas. A beleza dele me inspira e renova minhas esperanças, ainda que depois de alguns dias elas se esvaiam. Como não está longe, recomendo que também o visite. Está aberto aos não-elfos.”

  “É verdade que é guardado por uma ascética Ordem de sacerdotisas guerreiras?” Encarek reergueu os olhos.

  “A mais pura verdade.” O calombo entre as sobrancelhas de Issai era menos pontudo do que a média, mas seus braços muito peludos até para um lomai. Quase não se via a pele destes, recoberta pelo mesmo prateado da barba e dos cabelos longos. “A Ordem de Disirah. Elas cuidam da proteção do templo e conduzem os rituais. Aliás, uma delas é a responsável pelo fato que eu visite esse templo até com certa frequência.” Seu sorriso cresceu. “Na verdade nem parece ser uma guerreira, é extremamente doce e gentil. Inclusive já veio aqui algumas vezes para nos trazer comida e medicamentos. Uma pena que não tenha nenhuma chance com ela.”

  “Apenas porque é uma elfa?”

  “Esse também é um problema, meu amigo, mas não só. Elas têm que se dedicar em absoluto à função que exercem. Não podem se adornar, mostrar qualquer traço de vaidade, e acima de tudo devem ser e se manter virgens pela vida toda.” Uma boa razão para seu sorriso se desvanecer.

  Outros viajantes que conhecera haviam lhe falado sobre o famoso templo dos adanas que ficava nos subúrbios de Irul. De qualquer forma pretendia visitá-lo. Mas o relato de seu anfitrião atiçou ainda mais sua curiosidade e o estimulou a ir antes mesmo de buscar um local onde se estabelecer pelo tempo que ficaria na região. Que talvez nem sequer fosse ser uma casa, e sim uma gruta, pois pretendia ficar até tarde da noite a observar as rochas do lugar. Não iria obter o ich ou algo parecido, ao menos não de início, mas alguma coisa conseguiria para seu povo, sem precisar para isso perturbar o sono de um bom anfitrião (...)





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