Poentes e Auroras



(Arte por Valerio Oddis Jr)


   Um dos principais conceitos por trás da série da Trissência é o da interdependência. Na filosofia da série, a realidade é repleta de conexões, nada está realmente separado, a não ser quando os indivíduos criam a separação, e isso transparece na estrutura dos livros. Em O Elo, por exemplo, não é por acaso que o Prólogo se chama Poentes e Auroras. Neste, cada encerramento preanuncia a parte seguinte.

   Observemos o início da obra, com a presença de uma densa neblina no Prelúdio, que faz desaparecer um misterioso mago-guerreiro: (…) num instante desapareceu, envolto por uma neblina desbotada, malcheirosa e repleta de gafanhotos barulhentos (...)

   No princípio do Prólogo, uma outra névoa é dissolvida, e em contraste com o fim do Prelúdio não fará alguém desaparecer e sim revelará o mago-vidente Tirésias: A luminosidade fulgurante do sol penetrou na névoa cinzenta e foi dissolvendo-a, degrau por degrau. As ondas se acalmaram. A água, antes turva, tornou-se um espelho para o céu, sendo o reflexo, no qual o astro-rei se derretia no azul sem uma materialidade grosseira, muito mais uno e maleável do que o original.
   Algo que a neblina antes ocultava assomou à luz do dia: um barco espelhado do formato de uma espécie de esfinge, corpo de leão, asas de pássaro e cabeça de mulher, constituído por milhares de cristais de tamanhos e brilhos diferentes. Na superfície de cada cristal, viam-se refletidos, de diversas maneiras, o céu e o sol: esticados, compactos, achatados, distantes e colados. Contudo, o verdadeiro céu ensolarado, como seu tripulante solitário bem sabia, era um só, embora não pudesse enxergá-lo com os olhos.

   No pôr do sol na ilha de Himavat, ocorrem imagens relacionadas ao fogo e o anúncio da noite: (…) os raios do dia começavam a enrubescer. Um fogaréu descia sobre o mar que circundava a ilha de Himavat, sem feri-lo e sem se apagar; um fogo fúlgido, decorrente das centelhas que pipocavam da boca da Deusa enquanto esta engolia seu ovo dourado. O vermelho chamuscado prevaleceria até que a refeição e o parto divinos fossem consumados; e dentro em breve subiria uma ingrata fumaça escura, que limitaria as faíscas que a originaram a fugidios pontinhos brilhantes na imensa barriga em forma de gruta.

   Na parte seguinte, no início da descrição da batalha de Gayomard, a noite e o fogo estão presentes: Rangendo e agitando-se obliquamente contra o céu de uma noite abafada de verão, mais do que em rubro as chamas que devoravam o maciço castelo de Gayomard exibiam sua fúria em púrpura, com algumas modestas ranhuras em vermelho. Da maneira como surgiam, atravessando e devorando cada porta e janela e pululando das cúpulas esféricas estilhaçadas das torres, parecia até um vazamento: um vazamento crepitante. E, junto com a névoa e os pilares pouco tênues de fumaça, vinham cinzas e faíscas aos milhões, dançando lugubremente à luz dum tétrico luar (foice sorrateira que ceifava as estrelas, disfarçada entre as brumas fétidas) e encobrindo as torres cilíndricas, nos topos circulares das quais se acumulavam monturos de cadáveres.

   Quando Erik é preso, ficam em destaque o estrondo da porta da cela ao bater, a queda de uma caveira e retornam imagens relacionadas à aurora, a um renascimento, embora pareça o fim do protagonista: Jogado e trancafiado em uma cela inóspita, vislumbrou com imprecisão alguns insetos mortos e pedaços de cadáveres e esqueletos humanos e deduziu que estava vazia de vivos. A porta foi batida com força; menos mal que voltava a ouvir! (...)
   Um crânio humano repleto de teias de aranha rolou do parapeito da janela da cela e caiu no chão imundo, ao lado do rosto de Erik, que, mesmo sem forças para se levantar, entreviu os raios rubros da aurora se desvencilhado das barras metálicas da janela, dissolvendo uma pequena percentual da neblina de sua visão e avermelhando as órbitas vazias da caveira. Fechou os olhos, incomodado pela frágil luminosidade. Ao reabri-los e desviar a atenção do crânio, tateou em busca da sua espada. Emitiu um gemido. Passeou os dedos pelo chão sujo e frio. Teriam roubado até a sua espada? Vira-a nas mãos de outro e na hora não tivera forças para nada; agora pensava na lâmina, até que sentiu o metal gelado embaixo; sob seu ventre.
   (…) Parecia ser tarde demais para renunciar ao pacto: redespencou com a lâmina encravada, as reflexões interrompidas e o rosto contorcido, sem mais esperanças de aurora.
   As grades bateram de novo.

   Em seguida à aparente ruína de Erik, Aido surge na floresta de Kokoro, onde cai uma maçã, vermelha como a cor da aurora, mas símbolo de vida e não de morte como a caveira, afinal possui também a cor do sangue. A queda da fruta ocorre sem estrondo, com suavidade, em contraste com a batida da porta da cela na masmorra onde Erik foi jogado: Uma maçã acabava de cair da árvore. Uma fruta formosa e desinibida, derrubada na grama pelo vento, ou então por algum pequeno animal incauto.

   A senhora Tramonti, empregada de Sofia, possui um nome que é uma referência à palavra italiana tramonto, que significa “pôr do sol”.

   A simbologia de Poentes e Auroras está portanto relacionada às alternâncias e correspondências da vida.

   E há diversas outras para o leitor descobrir no decorrer da obra. Nenhum dos elos de nossa corrente é fruto do acaso.

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